Os Quilombos
- Rodrigo Caetano
- 20 de nov. de 2023
- 3 min de leitura
"Querem nos convencer de que somos pobres, mas na minha casa comem e dormem quantos aparecerem." (Nego Bispo)

Entre nós Dona Dainda, matriarca do Quilombo Kalunga.
Alguns projetos da Laguz nos levaram a entrevistar quilombolas dentro de seu território e, em uma empresa dedicada a ouvir pessoas, a experiência foi das mais transformadoras. O que observamos foi uma arquitetura social coletiva que nitidamente mantém fortes traços ancestrais e resulta em um equilíbrio justo onde a sociedade urbana está tão perdida e desequilibrada: o pertencimento.
Chegamos ao Quilombo de Levantado, situado no nordeste de Goiás, para cobrir como assunto a avaliação de um projeto do governo federal. Na chegada não vimos uma alma, nem cachorro nem galinha, e esse deserto ficou assim por alguns minutos. Então veio uma criança, e outra e outra, e logo estavavamos sentadas na varanda de uma casa, cercada por quase toda a comunidade.
Estavam interessados, obviamente, no motivo de nossa visita, e entre o grupo se destacou um rapaz com um caderno na mão. Ele foi um dos jovens que alcançando a graduação máxima na escola rural, foi para a cidade e continuou os estudos. Assim também passou a fazer a ponte entre a comunidade e as instituições, programas de políticas públicas e intervenções da sociedade fora do quilombo.
O rapaz sabia quem eram os beneficiários, quem ainda faltava, quais os outros programas em curso e os prometidos para o futuro. Junto a ele, uma matriarca acenava com a cabeça, confirmando tudo o que o jovem dizia, trazendo ao encontro um peso de assembleia, embora ela mesma proferisse poucas palavras.
Dentro do mesmo projeto, estivemos em alguns povoados organizados segundo o fracionamento retangular, com ruas cruzando em ângulo reto. Uma das entrevistadas nos contou que sua família ficou fora do projeto que estava estudando porque não se inscreveu. Perguntada sobre o motivo, disse que alguém disse que quem se inscrevesse perderia o acesso ao Bolsa Família. Não poderia arriscar.
Essa desinformação trouxe uma consequência muito séria para a vida dessa família, pois, sem o serviço que o projeto oferecia, foram privados de algo essencial: água potável. Essa escassez reorganizou tudo dentro da casa, fazendo com que as pessoas dedicassem uma boa parte do seu dia a buscar água no córrego mais próximo, a 2 km, de outra forma precisariam comprar água de caminhões-pipa.
A articulação observada no Quilombo não resolve as mazelas que recaem sobre as populações das periferias, algumas delas com camadas adicionais de discriminação e vivendo sob uma enorme pressão fundiária. Mas o “pertencimento” enriquece a vida e traz para o lado das dificuldades um saber viver que passa por saber se organizar internamente. A fragmentação urbana opera no sentido contrário, com a demanda por coisas essenciais, passando por instituições nem sempre eficientes, nem sempre acessíveis.
Hoje, queremos expressar nossa admiração pelas comunidades quilombolas, pois resistem integralmente e reivindicam com cada vez mais força o reconhecimento de sua existência ímpar e sua participação singular na formação cultural brasileira.
Nossa homenagem é direcionada a Dona Dainda, antes de tudo uma amiga com quem, a cada encontro, aprendemos e ensinamos, pois ela faz questão de perguntar sobre aquilo que sabemos, mas ela entende que não sabe e precisa aprender. Dainda é matriarca do povo Kalunga, responsável pela preservação das últimas áreas contínuas do cerrado. Um povo que exige respeito na palavra de seus jovens, mulheres, homens, brigadistas, parteiras, mestres e doutoras, sendo uma delas Dona Procópia dos Santos Rosa, Doutora Honoris Causa pela Universidade Estadual de Goiás, reconhecida por sua atuação na defesa do meio ambiente, pela luta em defesa do território kalunga e pela promoção da paz entre os povos.
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